Olhar da Câmara
Carolina Matos*
Diretor de pérolas nacionais aparentemente tão distintas como A Grande Arte e O Primeiro Dia, Walter Salles as une pelo interesse na possibilidade do diálogo e do encontro, temas essenciais num cinema onde o ser humano é o centro e a tecnologia existe para criar um canal que possibilita a troca de afeto e o olhar compreensivo, à luz da indiferença contemporânea dos espaços pós-modernos. No espaço saliano, o registro do Outro é feito sem pieguices e sentimentalismos baratos e é imerso num tempo filosófico que evidencia uma carga emotiva que nada mais é que existencialismo no seu estado mais puro.
Essa câmera humana acompanha Salles e faz de certos filmes nacionais um campo de resistência e conflitos, de contradições, diálogos e busca. É dentro dessa visão que Salles descarta o "cinismo cinematográfico" predominante no início dos anos 90, influenciado por cineastas como Quentin Tarantinom, e procura "captar uma geografia física e humana" própria. "Filmes tão diferentes quanto Festa de Família, O Gosto das Cerejas ou Nenhum a Menos têm um ponto comum: o interesse, a compaixão pelo outro, aquele que é diferente de você. Este é o cinema que me interessa", frisa Salles.
Fórum - A indústria cinematográfica brasileira lançou 31 filmes no ano passado, o que representa 9% do mercado. O público cresceu de 2,6 milhões em 98 para 5,2 milhões em 99. Apesar disso, não parece que o cinema nacional está muito otimista....
Walter - A instabilidade da industria cinematográfica brasileira não deixa de ser o reflexo do próprio país. Como no mito de Sísifo de Camus, há momentos em que nos aproximamos do topo da montanha, de uma situação de equilíbrio, para depois perdermos novamente terreno, muitas vezes por razões exógenas à produção cinematográfica. O que explica a resistência do cinema brasileiro, o que explica o fato que ele sobreviveu a desastres como o de Collor? A resposta está na incrível intuição que existe para a imagem no país. Apenas seis meses depois da primeira exibição do cinematógrafo na França, em 1895, ocorria a primeira exibição de cinema no Brasil. Em 1909, produzimos mais de 100 filmes no país, um número impressionante (ficções e documentários). E só abrimos as portas para os filmes estrangeiros quando a industria brasileira deixou de produzir imagens por falta de negativo, durante a primeira guerra mundial. Essa oscilação persiste até hoje.
Fórum - No ano passado, Central do Brasil quase levou o Oscar. Este ano foi a vez do filme Orfeu, de Cacá Diegues, concorrer na categoria de melhor produção estrangeira junto com outros de peso como o Tudo Sobre Minha Mãe, de Pedro Almodóvar. O fato de filmes nacionais estarem tendo uma maior repercussão no exterior entre o grande público e fora dos restritos festivais de cinema não é um empurrão no crescimento das produções nacionais daqui para frente?
Walter - Não creio que devemos pautar o cinema brasileiro pelo sucesso ou insucesso nos festivais internacionais. Central do Brasil ganhou 52 prêmios, a grande maioria fora do país. Não digo que esses prêmios não tenham sido importantes para a carreira do filme ou para o reconhecimento do cinema brasileiro. Penso apenas que devemos nos preocupar antes de tudo em captar uma geografia física e humana que nos é própria, com integridade, e não fazê-lo para ganhar prêmios.
Fórum - As verbas de R$ 3, 5 milhões anunciadas pelo Ministério da Cultura para os filmes de baixo orçamento até o ano 2001 são de fato um estímulo, ou podem vir a dificultar a produção de obras mais ambiciosas?
Walter - Uma cinematografia só se afirma e se desenvolve com experimentação. Sou a favor do financiamento para obras de cineastas estreantes ou experimentais. É uma medida essencial para oxigenar a produção cinematográfica de qualquer país.
Fórum - Conta um pouco sobre o seu novo filme. Sobre o que se trata e a que pé anda a produção?
Walter - Devo começar em breve a filmar a adaptação de um livro de Ismail Kadaré, Abril Despedaçado, no sertão brasileiro.
Fórum - O cinema nacional foi marcado por fases e movimentos, como o Cinema Novo e as pornochanchadas. Parece que hoje está havendo um boom de documentários, com sucessos como Os Carvoeiros, Santo Forte e Nós que aqui Estamos por vós Esperamos....
Walter - Não é apenas uma tendência brasileira, e sim mundial. Veja a repercussão de Buena Vista Social Club ou de American Movie. A tradição do documentário no Brasil não é, alias, um fenômeno recente. Desde o início do século passado, documentaristas brasileiros têm se preocupado em mapear o país. Só na nossa produtora, temos hoje 14 documentários em produção, incluindo Casa Grande e Senzala, de Nelson Pereira dos Santos e o novo filme de Coutinho.
Fórum - Central do Brasil é bastante influenciado pelo clássico do neorealismo italiano, o filme de De Sica Ladrões de Bicicleta. Você inclusive já se definiu como um diretor exponente de um "novo" neorealismo.
Há adeptos deste "movimento"?
Walter - Pessoalmente, acho que Central do Brasil é mais próximo de filmes de estrada como Alice na Cidade, de Wenders, do que do neo-realismo italiano. De qualquer forma, tive uma educação cinematográfica polifônica e acabei sofrendo influência de gêneros muito diferentes. Dos diretores italianos, Antonioni é o meu preferido, embora tenha grande admiração por Rossellini ou De Sica. A trilogia da identidade de Antonioni (Blow-Up, Passageiro Profissão Repórter e Zabriskie Point) me marcou profundamente. Prefiro falar do renascimento de um cinema humanista, em oposição ao cinismo cinematográfico que imperou no início dos anos 90, sobretudo sobre a influência de Tarantino. Filmes tão diferentes quanto Festa de Família, O
Gosto das Cerejas ou Nenhum a Menos têm um ponto comum : o interesse, a compaixão pelo outro, aquele que é diferente de você. Este é o cinema que me interessa.
Fórum - Documentários como Santo Forte soam como reciclagens do ideário "câmera na mão, participação de pessoas simples e baixos custos". O próprio tema da religião foi algo que inquietou diretores do neorealismo italiano, como Roberto Rossellini e Frederico Fellini, e está sendo bastante explorado em produções atuais.
Walter - Sim, mas é bom lembrar que as pessoas citadas tiveram visões diametralmente opostas da questão religiosa.
Fórum - Ao expor o vazio existencial da classe média somado ao caos urbano da cidade partida, O Primeiro Dia parece enveredar pelo caminho de um niilismo pós-moderno, que se distancia dos valores únicos pregados pelo neorealismo. A Grande Arte, um thriller policial, também teve essa marca. Você vê isso como uma estética forte no seu cinema?
Walter - O Primeiro Dia é um roteiro basicamente desenvolvido por Daniela Thomas que reflete em grande parte a preocupação com questões que lhe parecem essenciais no momento que estamos vivendo. Ao contrário de A Grande Arte, O Primeiro Dia não é niilista e sim um filme que acredita na possibilidade de um encontro, de diálogo, da aceitação do outro, daquele que é diferente de você, na cidade partida. É um tema, alias, que me parece essencialmente contemporâneo para quem vive no Brasil, e em nenhum momento
"pós-moderno".
Fórum - Como você situaria Terra Estrangeira?
Walter - Terra Estrangeira parte de um fato documental (o confisco absurdo perpetrado por Collor e o caos dele resultante) para mergulhar nos mesmos temas que você encontra mais tarde em Central do Brasil e O Primeiro Dia : o encontro entre diferentes, a descoberta do afeto, a possibilidade de se viver uma segunda chance.
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